quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Quinta de Santa Bárbara e Costas de Cão


A História da Quinta de Santa Bárbara e do Lugar de Costas de Cão


(Fachada da Quinta de Santa Bárbara)

Situado entre o Monte de Caparica e a Trafaria o lugar de Costas de Cão é um pequeno aglomerado  populacional, que actualmente pertence a estas duas freguesias de Caparica e Trafaria, e que no século XVIII também era designado por Costa de Cão.

Não se sabe qual a origem exacta do topónimo “Costas de Cão” no entanto esta poderá estar relacionada com a topografia local (existindo outros locais no país com nomes parecidos ou idênticos como Costas de Cão no concelho de Monção ou Rosto de Cão em Ponta Delgada) ou ainda com o brasão dos Costas antigos proprietários em Costas de Cão.

No entanto um pouco mais a poente deste mesmo local, antes do caminho do Montinhoso, há referência a um topónimo mais antigo o «Brunhal» ou «Abrunhal» associado a uma propriedade designada como a «Quinta do Brunhal» em 1478 (pertencia então a um D. Pedro de Castro que dela pagava foros às Igrejas de Almada)  e «Casal do Brunhal» em 1488 (pertencia já a D. Fernando de Castro).

A Quinta de Santa Bárbara, actual Lar-Granja Luís Rodrigues da Santa Casa da Misericórdia de Almada, é um espaço que está associado à própria história do lugar de Costa de Cão, uma vez que é precisamente nos documentos mais antigos sobre esta quinta que encontramos uma das referências mais antigas sobre este lugar da Freguesia da Caparica, trata-se de uma Escritura feita no ano de 1653 em que se refere à Quinta de Santa Bárbara como «Quinta do Poço Novo do Outeiro», ou «que por outro nome mais antigo se chama o Lugar de Costas de Cão».
Nela morava então o Padre Simão Guardês Peixoto, que ai tinha mandado edificar uma Ermida da invocação de Santa Bárbara, a qual dotava em 3$000 réis anuais impostos numa vinha em bacelo da mesma quinta.
 
(Vestígios de dois painéis em Castelo Picão um dedicado a Santa Bárbara e outro desconhecido)

Simão Guardês Peixoto, que veio morar para Almada na primeira metade do século XVII (em 1636 registamos a sua presença em Almada), era um padre açoriano de origens fidalgas cuja família (Guardês ou Guardez ou Gardez) foi uma das primeiras famílias a colonizar a zona oriental da Ilha de Santa Maria na primeira metade do século XVI. A sua vinda pode estar relacionada com a presença em Almada de um outro mariense importante – Francisco Curvelo de Andrade, Moço da Câmara Real, Cavaleiro e Fidalgo da Casa Real e Tabelião de Almada nomeado por D. Filipe I em 1595.

Sendo natural da Ilha de Santa Maria e existindo nesta ilha uma Igreja dedicada a Santa Bárbara é muito provável que a escolha do título da ermida da sua casa na Caparica estivesse relacionada com aquele culto da sua terra natal.
(Santa Bárbara – Ilha de Santa Maria, Açores)
(Imagem de Santa Bárbara da Igreja Paroquial de Santa Bárbara – Ilha de Santa Maria, Açores)

Em 1654 a mesma Ermida de Santa Bárbara é aberta ao culto público com Licença do Cabido da Sé de Lisboa, que então administrava o Arcebispado de Lisboa.

Em 1675 inicia-se na Caparica a tradição da Via Sacra do Senhor dos Passos na Semana Santa, cujo percurso começava na Igreja matriz e terminava na Capela da Quinta do Carmo em Murfacém (segundo nos dizem os arquivos carmelitas) e estava pontuado por diversos passos ou nichos da Via Sacra, hoje já desaparecidos ou transformados como acontece com o que existe no Largo da Torre ou os que estão na entrada da Quinta da Santa Bárbara.

(Local dos antigos Passos da Via Sacra na entrada da Quinta de Santa Bárbara)

Pouco se sabe dos proprietários desta quinta a partir de 1654 até 1733 apenas se sabe quem em 1669 os livros da paróquia registam em Costas de Cão uma quinta de Manuel de Macedo, sem se poder afirmar que se trate da Quinta de Santa Bárbara, no entanto é já em 1733 que voltamos a ter notícias da mesma quando então aqui morava António Lobo de Araújo Pereira [ver elementos biográficos no fim do artigo] que aparece numa escritura feita em Almada como «morador em Costa de Cão na sua quinta de Santa Bárbara».
Por outra escritura feita em Almada em 1738 ficamos a saber que a quinta de António Lobo era delimitada a poente por um prazo foreiro do Marquês de Valença, que ficava onde chamavam o «Brunal» e pelo norte com vinha que ficou de António da Costa Gil. E em 1758 ficamos a saber por um novo emprazamento que um dos bacelos da sua quinta era um prazo da Irmandade de N.ª Sr.ª da Concórdia (Fabriqueira da Freguesia de N.ª Sr.ª do Monte de Caparica), irmandade da qual António Lobo era aliás irmão aparecendo como procurador da mesma em 1752 junto com D. Luiz da Noronha, tio do Conde dos Arcos.

Em 1755 dá-se o Grande Terramoto de 1 de Novembro, o qual terá certamente deixado marcas no edificado da quinta, os quais no entanto não são merecedores de especial comentário do Cura da Caparica nas suas Memórias Paroquiais relatadas em 1758, em que diz a propósito da povoação e da ermida o seguinte:
«Costas de Cão, 8.ª povoação em que há 30 fogos, e uma Ermida de St.ª Bárbara, em a quinta de António Lobo de Araújo. Em esta povoação termina o lugar ou vara de Fonte Santa».

Em Abril de 1757 António Lobo de Araújo Pereira inclui a Quinta de Santa Bárbara no dote de casamento da sua filha - D. Águeda Josefa Lobo de Macedo, para que esta casasse com o seu primo D. Fernando José da Cunha Pereira. No sumário da escritura, registado no Livro do Distribuidor de Lisboa desse ano, diz-se que esta quinta constava de vários prazos em vidas e em fatiota e que tinha então um encargo de uma dívida de 5$000 Cruzados a juro, provavelmente resultante das obras de recuperação ou reedificação dos bens imóveis do dono incluindo a própria quinta. A doação era feita com a obrigação de se pagarem anualmente e vitaliciamente 30$000 rs a cada uma das duas irmãs de D. Águeda – D. Joana e D. Teresa.

(Fotografia do princípio da década de 1970 – Fonte: Jornal de Almada)

Depois de mais um lapso de tempo sem elementos documentais voltamos a encontrar uma notícia da quinta em 1805 em um anúncio de venda publicado nesse ano na Gazeta de Lisboa:
«Quem quizer comprar a Quinta de Santa Barbara no sítio de Costas de Cão em Caparica termo da Villa de Almada a qual consta de vinha, pomar de caroço, horta e oliveiras pôde ir ter com seu dono que assiste na mesma Quinta».

Em 1858 Inácio Rodrigues Martelo, antigo feitor das propriedades do Sr. Conde de Porto Covo Bandeira, em Caparica, comprou a Quinta de Santa Bárbara a Luiz de Almeida, que também foi proprietário da Quinta de Brielas (outra quinta que mais tarde vai entrar no património da Misericórdia de Almada). A Quinta de Santa Bárbara era então constituída por diversos prazos, sendo que dois deles em 1873 eram foreiros à Irmandade do Santíssimo Sacramento da Freguesia de Caparica (sucessora da Irmandade de N.ª Sr.ª da Concórdia), tratava-se de uma courela encravada na vinha de Santa Bárbara que pagava 210 réis pelo Natal, e de uma morada de casas que pagava 1500 réis também pelo Natal.

Em 1885 a Quinta de Santa Bárbara encontrava-se inscrita na Matriz N.º 2 do Registo Predial do Concelho de Almada com o n.º 1514 com rendimento colectável de 49$875 e era propriedade de Gertrudes Emília, viúva de Ignacio Rodrigue.

Em 1897 o historiador almadense Vieira Jr. descreve assim a povoação e quinta de Costas de Cão:
«Mais adeante da Torrinha fica pequeno sítio de Costas de Cão, onde à esquerda está o cemitério municipal, construído em 1883 no casal denominado da Baboseira, estendendo-se até grande distância o profundo Valle de Meirinho [Marinho], todo elle composto de fazendas e quintas escrupulosamente cultivadas.
Em Costas de Cão há dois estabelecimentos de mercearia e vinhos, que ali são muito antigos, e que actualmente pertencem aos srs. João Lourenço da Cunha e Romão Augusto Nunes.
É também em Costas de Cão a residência do sr. Luiz António Rodrigues, que ali possue uma excelente quinta e uma vasta casa de habitação, d’onde se disfructa uma linda vista, muita longa e pitoresca.
Esta quinta, que foi adquirida pelo sr. Ignácio Rodrigues, antigo feitor das propriedades do sr. Conde de Porto Covo Bandeira, em Caparica, pertencera antes ao já extincto Luiz de Almeida, dono que também fora da quinta de Briellas, e de quem mais adeante falaremos, quando chegarmos à Trafaria.
O sr. Luiz António Rodrigues, vulgo Luiz do Ignacio, torna-se também digno que d’elle aqui se faça uma especial referência, por quanto, ainda que muito novo, é um carácter probo e honesto, a honradez personificada»

Em 1945 o Conde dos Arcos refere que a quinta em 1930 pertencia a D. Maria dos Anjos Canelas Gomes Rodrigues (viúva de Luís António Rodrigues), que a deixou à Misericórdia de Almada para Asilo de Velhinhos e que da ermida havia ainda alguns vestígios numa das suas dependências.

Após as devidas obras de adaptação o espaço foi oficialmente inaugurado como Lar Granja Luís Rodrigues em 26 de Fevereiro de 1950, conforme nos relata o Jornal Praia do Sol numa cerimónia muito própria do tempo de então:
«A inauguração realizou-se no domingo, 26, de manhã e constituiu uma bela afirmação de fé nos destinos da assistência do concelho. A assistência era numerosa. O sr. Subsecretário da Assistência fazia-se acompanhar pelo sr. Governador civil de Setúbal, dr. Correia Figueira, pelo comandante Henrique Tenreiro [Presidente da Câmara de Almada] e pelo seu secretário dr. Amaral Marques. Estavam presentes os vereadores sr. tenente-coronel Adriano Dores, Virgílio Alves Xavier, Silvestre Rosmaninho, presidentes e vogais de todas as juntas de freguesia do distrito ; ainda representantes do comando de artilharia da costa e delegado marítimo, vice-reitor do Seminário de Almada, representante da Junta Central da Casa dos Pescadores, de associações e colectividades concelhias, das comissões políticas da União Nacional, da Colónia de Férias a Pedro Teotónio Pereira», e centenas de individualidades. Mais do que os nomes ilustres de tantas pessoas representativas, interessa o registo do facto em si, o valor da manifestação ao membro do Governo presente, o simbolismo transcendente da cerimónia, que foi ilustrada pelos voluntários de Cacilhas, Almada e Trafaria, pela banda dos Pescadores da Costa, por estandartes e troféus e pela assistência de muito povo. Na sala de estar dos velhinhos do Asilo-Granja, o sr. Provedor da Misericórdia pronunciou algumas palavras, muito sensatas, de agradecimento pela presença de tão categorizadas personalidades, e salientou o ambiente de paz e concórdia que torna possível, dentro do Estado Novo, realizar tantas obras a bem dos portugueses. Do notável discurso do sr. Subsecretário da Assistência sublinhamos a sua exaltação da obra das Casas dos Pescadores e a acção desenvolvida pelo comandante Tenreiro na Misericórdia de Almada. Disse: Esta doação, que consagra mais, deve servir de estímulo e de exemplo à gente boa do concelho de Almada. Os pobres são credores dos ricos. Estes, dando, recebem em tranquilidade de consciência e no prazer de colaborarem no bem comum».


(Ala moderna do Lar)

Com o apoio do Ministério das Obras Públicas foram feitas novas obras entre 1962 e 1967 com a construção de raíz de novas instalações ampliando as existentes, obras que foram inauguradas em 20 de Julho de 1968.
Na sequência destas obras foi também aberta ao culto uma Capela privativa no Asilo Granja Luís Rodrigues, pelo vig. Episc. Cónego João Alves conforme noticia o Praia do Sol de 1 de Agosto de 1969.

Por fim entre 1995 e 1997 realizam-se importantes obras de restauro e ampliação incluindo uma nova capela e instalações para o arquivo, conforme documenta o Jornal de Almada de 29 de Julho de 1995:
«Importantes obras de beneficiação no edifício do Lar da Misericórdia em Costas de Cão
Construção de um edifício de dois pisos: rés-do-chão alguns serviços, a capela e quartos. O primeiro andar conta com gabinete médico e de enfermagem, farmácia, dois quartos de isolamento, sala de esterilização, duas enfermarias, sanitários para dependentes e convencionais e ainda uma sala espera, fazendo-se a ligação entre os dois piso, além da escada por um monta-cargas comum ao transporte de pessoas.
As obras cujo custo está estimado em 38 mil contos foram iniciadas em Março de 1995. O projecto arquitectónico é de Guerreiro, os cálculos estruturais são do Eng.º Domingos Lé e a fiscalização da obra está a cargo de Elias Carção Ribeiro.
Registe-se que a Misericórdia de Almada tem desenvolvido meritória acção social, nomeadamente no apoio aos idosos, não só através do Lar de Costa de Cão, como no domicílio. As obras agora em curso visam melhor serviço aos que ali se acolhem mas também é digno de registo que a acção da Misericórdia não se limita só aos idosos. No apoio aos jovens esta benemérita instituição faculta a muitos o tecto acolhedor que nunca tiveram.
Manuel Lourenço Soares»

(Nova Capela de Nossa Senhora de Fátima)

No dia das Misericórdias 31 de Maio de 1997 foram visitadas as renovadas instalações do Lar Granja Luís Rodrigues da Misericórdia de Almada tendo de seguida sido celebrada missa na reconstruída Capela do Lar a que presidiu o Pe. Alfredo Fernandes Brito e com a presença o Grupo Coral “Cantante Vive” da Amora.


RUI M. MENDES
Caparica, 30 de Novembro de 2011

Revisão 1 de Dezembro de 2011

António Lobo de Araújo Pereira
Cavaleiro da Ordem de Cristo e da Ordem de S. Tiago e Espada, Familiar do Santo Ofício (TT-TSO, Conselho Geral, Habilitações, António, mç. 134, doc. 2232), aparece em 1733 como residente na Caparica, em Costa de Cão na sua quinta de Santa Bárbara.
Diz a sua habilitação de familiar do Santo ofício em 1724 que era:
«Proprietário do ofício de escrivão do consulado da Corte, natural da freguesia da Encarnação e morador na de Santa Justa, em Lisboa, filho de João de Araújo Barroso, natural de Vila Nova de Cerveira, familiar do Santo Ofício, e de D. Teresa Maria Lobo de Macedo, natural da vila de Arruda; neto paterno do licenciado Gonçalo de Araújo e de D. Antónia de Amorim; e materno de Francisco Leitão de Macedo e de D. Brites Loba de Barcelos, natural de Évora. Solteiro, vivendo com Maria Doroteia, natural da freguesia de Nª Sª dos Mártires, em Lisboa».
(TT-TSO, Conselho Geral, Habilitações Incompletas, doc. 522)

Em 1752 era irmão da Irmandade de N.ª Sr.ª da Concórdia da Caparica aparecendo como Procurador da mesma junto com D. Luiz da Noronha.
Tinha três filhas: D. Águeda Josefa Lobo de Macedo, que casou com um sobrinho de António Lobo – D. Fernando José da Cunha Pereira; e D. Joana e D. Teresa.
Tinha o Ofício de Escrivão do Consulado da Alfândega tendo recebido em 1764 a mercê de continuação do mesmo no seu filho José Faustino Lobo de Araújo Pereira (TT-RGM, D. José, Liv. 18, fól. 313v).


Para mais informação consultar:

Siglas:
ADL – Arquivo Distrital de Lisboa
ADS – Arquivo Distrital de Setúbal
CNA – Cartórios Notariais de Almada
CDL – Cartório do Distribuidor de Lisboa
AHPL – Arquivo Histórico do Patriarcado de Lisboa
OSCP – Ordem de Santiago / Convento de Palmela
PRQ – Registos Paroquiais
TT – Torre do Tombo
AHMF – Arquivo Histórico do Ministério das Finanças
BCJPE – Boletim Cultural da Junta de Província da Estremadura

Fontes
1478 – TT-OSCP, Mç. 1, n. 45 (MF 7545 #3), fól. 10
1488 – TT-OSCP, Mç. 2, n. 55 (MF 7545 #4), fól. 13
1595 – Aires Passos Vieira, Almada no Tempo dos Filipes
1636 – ADS-CNA, Caixa 4390, Livro 41, fól. 14
1653/54 – AHPL, Ms. 660/UI. 317, fól. 122-123
1669 – ADS-PRQ, Almada, Caparica, Óbitos, Liv. 4, fól. 161v
1675 – ADS-PRQ, Almada, Caparica, Óbitos, Liv. 5, fól. 3
1733 – ADS-CNA, Livro 82, fól. 11
1752 – ADS-CNA, Liv. 103, fól. 117
1758 – ADS-CNA, Liv. 112, fól. 52v
1757 – ADL-CDL, Liv. 118, fól. 209
1805 – Gazeta de Lisboa, Ed. 8 de Junho de 1805
1858 – TT-AHMF, Desamortização e Foros, Liv. 463, fól. 741v e 743
1885 – Mappa organizado de acordo com o regulamento de 25 de Agosto de 1881 dos Contribuintes inscriptos na Matriz Predial (informação cedida pelo Dr. Francisco M. Silva)
1897 – Duarte Joaquim Vieira Jr., Villa e Termo de Almada, 1897, p. 190-191
1945 – Conde dos Arcos, «Relação dos Templos de Caparica», BCJPE, n.º 10, 1945, p. 346
1950 – Jornal Praia do Sol, A.1, N.6, Ed. 1 de Março de 1950
1969 – Jornal Praia do Sol, A.20, N.284, Ed. 1 de Agosto de 1969
1997 – Jornal de Almada, Ed. 6 de Junho de 1997

Outra bibliografia:
ANOTAÇÕES AO LIVRO III DAS SAUDADES DA TERRA DO DR. GASPAR FRUTUOSO POR MANUEL MONTEIRO VELHO ARRUDA